Encruzilhada da tributação internacional: STF definirá futuro dos lucros de controladas no exterior

O STF (Supremo Tribunal Federal) está prestes a proferir uma decisão de impacto sistêmico no direito tributário brasileiro ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) nº 870.214. O litígio, que envolve a gigante da mineração Vale à União, versa sobre a constitucionalidade da tributação automática dos lucros de empresas controladas e coligadas no exterior, estabelecendo um divisor de águas na interpretação das normas de tributação em bases universais e sua relação com os tratados internacionais.

Embora o caso não possua repercussão geral reconhecida — o que limita sua aplicação às partes do caso concreto —, a decisão terá um peso jurisprudencial e simbólico imensurável, com potencial para influenciar um contencioso que, segundo o anexo de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), alcança cifras bilionárias.

A discussão central do RE nº 870.214 reside na aparente colisão entre o artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 e os tratados para evitar a dupla tributação (TDTs) firmados pelo Brasil. A referida MP determina que os lucros apurados por uma controlada ou coligada no exterior sejam considerados disponibilizados para a controladora no Brasil na data do balanço, independentemente de sua efetiva distribuição. Essa “disponibilização jurídica” obriga a empresa brasileira a incluir esses lucros na base de cálculo do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Contribuintes x Fazenda Nacional

De um lado, os contribuintes, como a Vale, sustentam que os TDTs, em especial os firmados com a Bélgica, Dinamarca e Luxemburgo (onde a mineradora possui controladas), proíbem a dupla tributação. Argumentam que, conforme o artigo 7º do modelo de convenção da OCDE, seguido por esses tratados, os lucros de uma empresa só podem ser tributados no país onde ela está estabelecida. Assim, a tributação no Brasil só deveria ocorrer quando os lucros fossem efetivamente remetidos à matriz brasileira.

De outro lado, a Fazenda Nacional defende que a tributação não incide sobre o lucro da empresa estrangeira, mas sim sobre o acréscimo patrimonial da empresa controladora brasileira. Segundo essa tese, quando a controlada no exterior aufere lucro, o patrimônio da controladora no Brasil aumenta automaticamente, um efeito contábil refletido pelo método de equivalência patrimonial (MEP). É este aumento de riqueza, registrado no balanço da empresa brasileira que constitui o fato gerador de IRPJ/CSLL, em linha com o princípio da universalidade da renda, que permite ao Brasil tributar os rendimentos globais de seus residentes.

Ocorre que o MEP não opera a transferência jurídica do lucro da controlada para a controladora. Pelo contrário, seu propósito é refletir, no balanço da investidora, o valor do seu investimento atualizado pelo resultado da investida, enquanto este resultado permanece no patrimônio da empresa no exterior. Trata-se de uma ferramenta de avaliação prospectiva, similar a outros ajustes a valor de mercado, destinada a antecipar o valor futuro do ativo, e não de um registro de riqueza nova já disponível. O fato gerador tributário exige a aquisição de “riqueza nova”, algo que não configura um mero lançamento contábil, sem a correspondente disponibilidade.

Essa neutralidade do MEP não é uma mera interpretação, mas uma diretriz expressa e histórica tanto na legislação societária quanto na tributária. A própria Lei das S.A. (Lei nº 6.404/76) prevê que a contrapartida do ajuste do MEP pode ser alocada em uma “reserva de lucros a realizar”, reconhecendo que o valor ainda não foi efetivamente ganho.

Lucro que não pode ser usado

Paralelamente, sucessivas normas tributárias (como o Decreto-Lei nº 1.598/77 e as Leis nºs 9.249/95 e 12.973/14) determinaram expressamente que os ajustes decorrentes do MEP são neutros para a apuração de IRPJ/CSLL. Essas normas alinham-se ao princípio da capacidade contributiva, pois não se pode exigir tributo sobre um lucro que a empresa controladora não pode usar, dispor ou distribuir. Em suma, a própria ciência contábil e o arcabouço legal brasileiro tratam o MEP como um mecanismo de avaliação, e não como a realização de um resultado tributável.

Não obstante, a controvérsia acerca da tributação de controladas no exterior é antiga e já foi objeto de análise tanto pelo STF quanto pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em decisões anteriores, como na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.588 e nos RE nº 611.586 (Tema 537) e RE nº 541.090, o STF firmou o entendimento de que a tributação automática de lucros de controladas é constitucional, especialmente quando localizadas em “paraísos fiscais”. O ministro Teori Zavascki, no RE nº 541.090, ressaltou que “a tributação não está prevista para incidir sobre lucro obtido por empresa situada no exterior, mas, sim, sobre os lucros obtidos por empresa situada no Brasil, provenientes de fonte situada no exterior”.

No entanto, ao julgar o caso específico da Vale, o STJ, em sede de recurso especial, decidiu em sentido contrário, entendendo que os tratados internacionais prevalecem sobre a legislação interna, afastando a aplicação do artigo 74 da MP nº 2.158. Foi essa decisão que levou a União a recorrer ao STF, argumentando que o STJ não apenas contrariou precedentes da Suprema Corte, mas também violou dispositivos constitucionais.

Divergência no STF

O julgamento no STF, iniciado em maio de 2024, revelou divergência entre os ministros.

O voto do relator, ministro André Mendonça, foi favorável ao contribuinte. Para o ministro, os TDTs firmados com Bélgica, Dinamarca e Luxemburgo na década de 1970 prevalecem e bloqueiam a tributação automática, pois atribuem a competência tributária ao país do estabelecimento permanente. Mendonça rechaçou o argumento da Fazenda sobre o MEP, afirmando que o método é “contabilmente neutro” e não altera a essência do que se tributa: o lucro da controlada no exterior. Ele destacou que, enquanto a maioria dos países adota regras de Controlled Foreign Company (CFC) para coibir situações específicas de elisão fiscal (renda passiva, alíquotas baixas), o Brasil optou por um modelo de “full inclusion” (tributação universal e irrestrita de todos os lucros), que conflita com a lógica distributiva de competências dos tratados. Ressalvou, contudo, a aplicabilidade da norma para controladas em paraísos fiscais ou em casos de comprovada evasão, alinhando-se à ADI nº 2.588.

O ministro Gilmar Mendes abriu a divergência, votando com a Fazenda Nacional. Para ele, a questão é de natureza constitucional e não há conflito com os tratados, pois estes visam a coibir a dupla tributação jurídica (tributar a mesma pessoa duas vezes pelo mesmo fato), e não a dupla tributação econômica (tributar duas pessoas distintas em relação ao mesmo fato econômico). No caso, a tributação recai sobre a empresa brasileira por um acréscimo em seu patrimônio, e não sobre o lucro da entidade estrangeira. O ministro destacou que as regras CFC são instrumentos legítimos reconhecidos pela OCDE para proteger a base tributária nacional.

Na mesma linha, o ministro Alexandre de Moraes acompanhou a divergência, reforçando a natureza constitucional da matéria. Ele citou os precedentes do STF (RE nºs 611.586 e 541.090) que validaram a constitucionalidade do artigo 74 para empresas controladas, mesmo as que não estão em paraísos fiscais. O ministro defendeu que o sistema tributário brasileiro, baseado no princípio da universalidade, permite a tributação da renda global de seus residentes e que não aplicar o MEP resultaria em um “privilégio anti-isonômico” para as empresas com investimentos no exterior.

Na última sessão, realizada em 6 de junho de 2025, o ministro Nunes Marques seguiu a divergência, consolidando a maioria de 3 a 1 a favor da tese da Fazenda Nacional. Em seguida, o ministro Luiz Fux pediu vista dos autos, suspendendo o julgamento.

A decisão do STF no RE nº 870.214 transcende o interesse das partes envolvidas. Ela irá definir os contornos da tributação internacional no Brasil, a força dos tratados internacionais em face da legislação doméstica e a estabilidade do sistema de precedentes. Para o governo, uma vitória é crucial para a manutenção de uma arrecadação estimada em dezenas de bilhões de reais. Para as empresas, o resultado impactará diretamente o planejamento tributário de operações internacionais e a segurança jurídica para investimentos futuros. O Brasil aguarda, atento, a palavra final do STF.

Fonte: Conjur

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